ADEUS A MEU “IRMÃO” EDNEI

Desculpem, foi o maior necrológio que escrevi, mas foi também uma das maiores perdas que tive e as pessoas se sintam à vontade para ler ou não:

ADEUS A MEU “IRMÃO” EDNEI,

(EdneI José Dutra de Freitas, nascido em São Lourenço, a 3 de setembro de 1947 e falecido no Rio, a 30 de outubro de 2021)

Então é isso, meu querido! Você me traiu! Não combinamos que ainda haveria tempo para um último abraço? Não combinamos que você não iria antes de mim? Como você teve coragem de fazer isso com seu irmãozinho? Você como psiquiatra não sabia o quanto sou passional? Não sabia que não aguento dores de separação? Então é isso? Isso? Você acha que eu merecia? Quem lhe deu ordem para me abandonar? Como você fez isso comigo depois de 68 anos de amizade? Eu não tenho dúvidas de que você foi uma das pessoas que mais gostou de mim nesses 74 anos de vida. E a recíproca é verdadeira. Não seremos mais colegas desde o Jardim da Infância, em 1953, na sala da Dona Lucy? Não seremos mais amigos a partir de então e até os dias atuais? Não cantaremos mais “Luar do Sertão” na festinha do palco que havia na cripta, sob o comando da saudosa Zuza Franqueira? Não ficaremos juntos até o Terceiro Ano Primário? Você não vai mais tirar os retratos com a turma, sendo que num deles você aparece com um rato morto em suas mãos? Não voltaremos a nos encontrar numa sala de aula, no segundo semestre de 1958, quando eu vim completar o Quinto Ano Primário no Externato São Francisco, após estar em Varginha? Não verei mais seu avô Juca Dutra ir resolver assuntos relacionados a você, com a Dona Diná, poucos dias antes de morrer atropelado na Avenida Afonso Pena, em Belo Horizonte? Não estaremos juntos, mas em salas separadas, em 1959, no único ano em que estudei no velho e querido Ginásio São Lourenço? Não vai mais torcer pelo seu América? Mas no fundo, eu desconfio de que você tinha também um quê de flamenguista, principalmente depois que o América decaiu. Não haverá mais, na década seguinte, a gente sempre se encontrando nas férias para sairmos juntos, irmos ao Parque, confidenciarmos sobre nossas paqueras, falarmos de política, filosofia e afins? Não vamos tirar aquele retrato junto, moda dos anos 60, como se fosse um pequeno binóculo, para guardarmos até os dias atuais? Não ficaremos sentados num daqueles bancos perto da Vichy, vendo as meninas desfilarem? Não passaremos mais no vestibular na mesma época? Você não vai mais aparecer aqui com o cabelo oxigenado pelo trote, que na sua escola era bem mais simples do que na minha? Não curtiremos juntos aquele saudoso Carnaval de 1974? Não vamos encher a cara juntos outra vez na Kibeleza, para depois irmos aos bailes do Primus ou do Country? Você não vai mais clinicar em Botelhos o começo da carreira? E as cartas para Resende, você não vai mais mandar? Não vai sugerir que eu vote em Itamar Franco para senador, o que eu já tinha decidido há bastante tempo? Você não vai mais justificar a não presença em meu casamento, em dezembro de 1979? Não vai mais levar a avó Januária para se consultar no saudoso consultório da Melo Viana?Não trocaremos mais cartões de Natal quando isso era moda? Não vai nos visitar recém-casados, com sua esposa, na velha e querida e demolida casa da Dom Pedro, em 1981? Não vai mais se alegrar com a chegada de meus filhos? Não vai mais para o Nordeste por algum tempo, fazendo com que passássemos tantos anos sem nos ver e tendo raros contatos por cartas? Não vai mais vibrar com meus livros e meus escritos? Não vai fazer prefácio e contracapa de alguns deles? Não vai me elogiar como escritor e me chamar, dentre outras coisas de “maior memorialista mineiro vivo”? Não vai mais me comparar a Guimarães Rosa e a outros? Não vai dar entrevista na Rádio São Lourenço, falando de minhas obras? Não vai mais me comparar a seu avô Juca Dutra, como contador de histórias? Não vai mais ser homenageado em meu livro Caminhos do Ontem, como um dos três extraterrestres, Édus? Interessante que você se foi logo depois do Élvus. Restou o Haris… Dois psiquiatras e um psicólogo, não sei por que, mas descobri isso só depois de o livro estar lançado. Não mais ser citado em quase todos os meus livros. Em uns com mais detalhes e em outros, com menos. Não poderei mais ter a alegria de ver nosso contato reativado a partir do princípio dos anos 2000?Não vai mais estar presente em várias de nossas festas, a começar pelas Bodas de Prata, depois meus 60, 65, 70 anos? Bodas de Pérola, Esmeralda e outras. Não vai mais protestar contra a saída dos franciscanos de nossa cidade, em 2004, depois de 72 anos? Não vai mais almoçar em nossa querida casa da Porta do Céu, quando depois de muitos anos ausente eu o convenci de vir novamente a São Lourenço? Você tinha medo de sofrer com os fantasmas do passado, mas acabou vindo e a partir de então veio algumas vezes. Não vai mais ficar no velho e querido Hotel Elite, onde eu poderei ir encontrá-lo? Não vai mais trocar e-mails comigo, nesses últimos três ou quatro anos em que não o vi mais? Não vai mais ser avesso a todas as outras formas de contato por Internet, fora uma curta passagem pelo Facebook? Nem mesmo fazer parte do Memórias de São Lourenço onde poderia ter contribuído muito com suas lembranças, você quis. Mas eu o entendo. Você acha que isso lhe traria mais sofrimento. Não vai mais estar presente na festa de meus 70 anos, em 18 de fevereiro de 2017, última vez em que nos abraçamos e matamos as saudades? Anos atrás quando o parabenizei pelo aniversário você me respondeu:– Filipe, fomos colegas de infância, eu estou fazendo 69 e você a caminho dos 70. Como foi que deixamos que isso acontecesse? E respondi:– Não sei, não sei, eu também vivo me perguntando. Nunca vi dois amigos tão almas-gêmeas…Não haverá mais os parabéns que lhe mandava em todos os dias 3 de setembro, data também do aniversário de minha mãe?Não vai mais falar das coisas que o estavam aborrecendo nos últimos tempos? Não vai mais me receitar remédio para insônia, como fez no último e-mail, no nosso último contato, perguntando, dias após, se eu havia gostado do efeito? Confesso que pensei que você ainda fosse ficar mais um pouco por aqui e que mataríamos as saudades ao menos via Internet. Realmente você me surpreendeu. E a dor de sua ausência que agora se faz presente que terei que aguentar até o fim da vida? Vamos lá, meu irmão, eu o perdoo! E saiba que você ganhou o maior necrológio dos muitos que já escrevi. E que mais uma pequena parte minha foi embora junto com você. Tenho certeza de que no Paraíso para onde iremos todos, todas vão se reunir para que eu seja o eu total outra vez. Espero que no lugar onde agora se encontra você tenha finalmente encontrado a paz que sempre buscou e com a qual sempre sonhou. Espero poder vê-lo outra vez, sem ter que sofrer a dor da separação. Espero continuar então nossos papos sempre intermináveis. Mas que a saudade vai doer sempre, pode ter certeza. Fique bem! Até breve!(Termino colocando algumas palavras suas no livro acima mencionado e cujo escrito tinha o nome de Ontem Imortal. Além disso insiro aqui uma de suas belas poesias, se reportando ao livro anterior, 1.247 Dias, que narra o período resendense de minha longa História: “Meu querido amigo desde nossos seis anos de idade, comigo cresceu e estudou e até hoje jamais nos separamos. Somos gêmeos homozigóticos na alma. Com ele hei compartilhado os momentos históricos de nossas vidas cinquenta anos, não só, mas especialmente no teatro de operações sãolourenciano… ”“E isto não acontecerá enquanto cronistas e memorialistas como Filipe Nacle Gannam estiverem na ativa, pois ele sabe, como ninguém, deslindar o novelo das lembranças, a exemplo de grandes memorialistas mineiros – estou falando sem dúvida de, Pedro Nava e Cyro dos Anjos”. “Os labirintos do passado guardam nossa identidade autêntica, como acentuava ao longo de suas três mil páginas Marcel Proust, e eles não fazem coisa diferente na prosa de Filipe Nacle Gannam. Prosa guardiã de desejos, sonhos, lutas, mas sobretudo das expectativas de garotos que pretendiam conquistar ou mudar o mundo, e hoje agregam ao saldo de suas vidas um replay fidelíssimo do que foram, fomos, na engenhosa e sensível rememoração de Filipe. Temos, na verdade, uma São Lourenço rediviva. ”Por fim, a poesia: SONHANDO AS LIBERDADES Sonha, Filipe, sonha ainda, E sonhando sonha as liberdades De Argemiros, Dinhos e Clarindas, Rosas Brancas, Resende, a tenra idade Cinco-cinco, dois-sete, o sonho junta. A Marina, teu clone e a saudade: A sonhar reminiscências, a mente astuta. Restaura arquivo desfeito em tempestade. E me comove em teu sonho, merecer-te. Figurar-me o amigo tão remoto, Tão longe de quem nunca esqueceste: Pensar onírico, o mais sincero dos que sei! Por isso a ti e à minha terra ora volto .De coração nas mãos, sempre teu, o Ednei. Rio de Janeiro, 30 de novembro de 2002E mais 1.247 Dias

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